A poesia do gesto
[Crônica de 18 de junho de 1998]
Um milionário americano doou um milhão de dólares para comprarem Viagra para os pobres.
Com certeza é uma forma nova de caridade. uma forma inédita e inusitada, mas, também com certeza, tão boa quanto as melhores e de uma enorme poesia.
A caridade existe para fazer melhor a vida dos que foram esquecidos pela sorte. para dar conforto, ou um mínimo de conforto, para quem foi deixado de lado na divisão do mundo, para quem a sorte aparece sempre madrasta e para quem a vida é um enorme vale de lágrimas, onde ele se afoga ao longo dela, esquecido por Deus, sabe-se lá por quê.
A caridade serve também para deixar o caridoso em paz consigo mesmo, mas este é outro capítulo que passa pelas necessidades de conforto de cada um.
O que importa hoje é sabermos que um milionário americano, tão bom quanto os melhores, doou um milhão de dólares para os pobres terem Viagra e experimentarem, mesmo depois de já não poderem, o prazer.
O prazer dado por Deus como uma benção da qual nasce a espécie. O prazer de ter prazer pelo prazer de se ter prazer, porque, na longa lista das coisas boas da vida, com certeza o prazer vem antes de uma sopa aguada, ou de um caldo quente.
Quem sabe o prazer venha até antes da vontade de rezar, ou, colocando melhor, quem sabe o prazer seja a nossa forma mais eficiente de comunicação com o universo.
Ao doar um milhão de dólares para que os pobres possam ter prolongado o prazer que os faz sentirem-se parte do universo, que os coloca em sintonia com o universo, o milionário americano está fazendo muito mais do que simples caridade.
Dando aos esquecidos da sorte a chance de reencontrarem o prazer, ele está dando-lhes também a chance de redescobrirem a vida e que, mesmo diante da hora mais difícil, ela vale a pena de ser vivida.
Tem gente que doa pão, outros doam casas, dinheiro, roupas. Todos estão certos e fazem bem em contribuírem para uma vida melhor para quem mal tem vida.
Ao doar Viagra, o milionário americano, num gesto insólito, está doando também a possibilidade deles, ainda que por uma última vez, viverem o sonho da eternidade.
___
Siga nosso podcast para receber minhas crônicas diariamente. Disponível nas principais plataformas: Spotify, Google Podcast e outras.
Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.