Tem certos dias
Tem certos dias que a gente acorda e fica deitado pensando se vale a pena sair da cama. Se levantar terá algum sentido, além de levar mais uma paulada, sem razão, exceto estar vivo.
Tanto faz. Tanto faz de onde, como, de quem. A paulada é uma certeza e o ato de levantar corresponde a dar o pescoço para o carrasco, mas sem dar-lhe o óbolo em paga para cortar nossa cabeça com carinho.
O mundo surge cinza no meio da semiescuridão do quarto iluminado pela luz da manhã entrando pelas frestas da janela fechada. E a semiescuridão do quarto faz mais cinza ainda as outras perspectivas.
Levantar é a certeza do desastre, do preço que não vale a pena ser pago, de que tudo está errado e por isso qualquer coisa vai dar errado, por mais esforço e sacrifício que se faça.
Mas, a gente se levanta porque tem que se levantar. Sai da cama, abre a janela, olha pra fora e descobre que o mundo está lá, do jeito de sempre, mas se mostrando de outro jeito.
Uma flor balança na trepadeira ao lado, um pássaro canta, um bando de periquitos passa voando, fazendo uma algazarra louca, que assusta o pássaro que para de cantar.
A vida se mostra, se expõe, em cada galho balançando, na nuvem que tapa o sol, no vento semifrio da manhã de outono.
De repente, a pele se arrepia, o dia entra pelo corpo, toma o sangue e acelera o coração.
O cinza sai de cena. A luz fica mais clara e todas as certezas que estavam escondidas fazem, de novo, a vida valer qualquer pena.
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