A mata da fazenda
Não há quem não tenha um piques. Um local que é mais do que um refúgio, para recarregar as baterias e enfrentar a vida, dando-nos de novo a força sem a qual seria impossível tocar em frente, abrindo caminho no cipoal fantástico em que transformaram o mundo.
Durante anos e anos este lugar para mim foi a mata da fazenda. Local protegido por deuses e duendes encantados, dentro da mata eu me sentia a salvo de todos os perigos, capaz de reencontrar a calma indispensável para alma e para o corpo.
Lá, os problemas deixavam de ser problemas. Como se o vale abruto onde ela crescia servisse de proteção contra as coisas ruins que me afligiam, impedindo-as de descerem suas pirambeiras a pique, a mata da fazenda me recebia e me envolvia em sua umidade e em sua vida, modificando a minha natureza humana, fazendo-me parte dela, um pouco vegetal, um pouco animal, e com a sensibilidade de entender as pedras e águas que escorriam por elas, saindo da terra numa nascente recoberta de musgo, onde eu matava a sede e ficava me refrescando no verão.
A mata da fazenda era minha amiga. Mais do que amiga, a mata da fazenda era minha cúmplice. Ela sabia tudo o que eu fazia, e o que eu pensava, através de um diálogo sem palavras que nós mantínhamos permanentemente, todas as vezes que eu corria atrás da sua proteção.
Quantas e quantas vezes eu subi o morro que levava a ela, desesperançado ou triste, para voltar, algumas horas depois, rindo e achando graça na vida?
Quantas e quantas vezes a mata me viu chorar e entendeu o meu choro, esperando a hora certa para me dar a sua paz e a sua seiva.
A mata sabia da minha alma, dos meus anseios e dos meus medos humanos. E ela me aconselhava e me mostrava o melhor caminho.
Também quantas vezes eu corri para ela simplesmente porque estava com vontade de me jogar em seu chão, de sentir o seu cheiro, de respirar o seu ar?
Porque estava com vontade de sentir o vento por entre as suas árvores e ouvir os seus ruídos, vindos dos lugares mais inesperados.
Poder ficar deitado em seu humos, sentindo as costas amassar as folhas e os galhos velhos, enquanto o sol entrava por entre seus galhos, abrindo trilhas no ar.
Mas mais do que tudo, entrar na mata de noite. Sentir a vida noturna circulando em volta, com um cigarro de palha para espantar os mosquitos.
Até hoje a mata da fazenda está gravada no mais fundo da minha alma, só que eu não entro mais nela.
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