Lembranças
A casa ficava numa rua calma do Jardim Europa. Térrea, com um jardim na frente e um corredor comprido que levava até a garagem, tinha um clima todo especial; uma atmosfera própria, que a fazia diferente e aconchegante.
As árvores e os arbustos no jardim da frente praticamente a tapavam da rua. A vegetação escondia a casa, dando-lhe não mistério, mas a sensação de antiga, apesar de sua arquitetura moderna.
A dona da casa também não tinha idade. Dizem que as casas adquirem a alma dos donos. Se for assim, a casa não tinha idade porque a sua dona não tinha idade. Ela parecia eterna. Sempre simpática e prestativa, recebendo como se recebia nas casas de São Paulo de antigamente, com os mesmos bolos de São Paulo de antigamente, e a fartura que fez a fama de nossa hospitalidade.
A casa funcionava de noite. Pode parecer incrível, mas o ritmo da casa era todo noturno. A vida começava depois das sete e não tinha hora para terminar, terminando invariavelmente às oito ou nove da manhã seguinte, com a mesa do café posta, com bolo, queijo, geleia e café com leite.
Todas as terças feiras – já faz muitos anos, mas é como se fosse ontem – eu ia para lá, sem hora para chegar, sem hora para sair, sem assunto pré-programado, ou questões vitais para resolver.
No fundo da casa tinha um pavilhão de vidro que era onde o meu amigo recebia. O termo é bem este: recebia. O Cesário recebia como um príncipe. Com a pompa e a solenidade que cada hóspede merece e com a honra que a casa tem por recebê-lo.
E a noite escorria comprida, com a música saindo do que havia de mais moderno em equipamento de som, primeiro baixa, depois não tão baixa, e mais alta, e mais alta, até que a governante da vizinha abria a janela e começava a jogar os seus sapatos, como contraponto para uma ópera de Wagner.
Não que a noite fosse toda dedicada à música clássica. De forma alguma. Havia uma sequência que permitia todos os ritmos e todos os sons, mas normalmente, o final, a apoteose – porque o final era sempre apoteótico – era com música clássica. E com ênfase, pelo menos nas terças- feiras, para Wagner.
Foi o tempo do último sopro de liberdade absoluta. Foi a última vez que nós pudemos fazer o que queríamos, sem explicações e sem culpas, numa cidade amiga e menos violenta.
Ainda era possível viver o sonho e ser o super-homem era fácil. Depois, a vida veio… E foi vida… Mas, Cesário, você e a sua casa permanecerão para sempre um marco na história de muita gente.
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