O carro que queria voar
[Crônica de 10 de setembro de 1997]
O destino dos carros é ser carro e o destino dos aviões é ser avião. Não há como mudá-los. Por mais força que a gente faça, um avião vai ser sempre um avião e um carro vai ser sempre um carro.
Da mesma forma que um lambari é um lambari e um tubarão é um tubarão, e um nunca vai ser o outro, é impossível mudar a natureza das coisas, exceto o sexo dos homens, que, às vezes, viram mulher.
Foi isto que ele aprendeu da forma mais dura que existe: caindo e se machucando.
Seu sonho sempre foi voar. Ganhar as alturas impulsionado por quatro potentes turbinas GE ou Pratt & Whitney, transformado num enorme jumbo, capaz de cruzar os oceanos, brilhando sob o sol a onze mil metros de altura.
Quando ele descobriu que jamais seria um jumbo, fez promessa para ser qualquer outro avião. Até paulistinha ele aceitava ser.
Mas o seu santo protetor não se comoveu e ele não conseguiu mudar de forma, nem ganhar as asas que lhe permitiriam sair do chão, ainda que por poucos minutos, como o 14-Bis de Santos Dumont.
Disposto a varar os céus de qualquer jeito, tentou virar helicóptero e depois se conformou em ser um pequeno ultraleve.
Tudo sem sucesso.
Sua forma não mudava porque não poderia mudar. Ele fora construído para ser carro e o seu destino, até virar sucata, era continuar carro, por mais que ele esperneasse, querendo ser avião.
Finalmente, desesperado, acreditando em pensamento positivo e anjo da guarda, numa terça-feira de tarde, ele entrou na pista de Congonhas, acelerou, ganhou velocidade e disparou pista a fora, convencido que iria voar.
Acabou praticamente destruído, no fundo do barranco onde termina a pista.
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