Como as ruas perdem o seu caráter
[Crônica de 21 de julho de 1999]
Como as cidades que elas compõem, existem ruas com caráter e ruas sem caráter, como existem ruas participantes e ruas indiferentes, e ruas boas e ruas más, e por aí vai, numa infinidade de situações, que fazem certas ruas melhores do que as outras.
Em São Paulo não é diferente de qualquer outro lugar do mundo e, se a maioria das ruas são neutras ou cinzas, não sendo boas nem ruins, existem também ruas fortes, com posições definidas, nem todas em favor do bem ou da paz.
Várias são francamente más e se divertem vendo a desgraça alheia estampada no seu asfalto, numa mancha de sangue, numa trombada, numa bala perdida que acerta quem não tinha nada com isso.
É verdade que no começo, quando foram planejadas, com certeza elas não eram más. Ficaram assim porque alguém, por alguma razão pouco clara, que vai da incompetência à mais deslavada bandalheira, fê-la ficar má, inclinando uma curva para o lado errado, ou colocando um cruzamento onde ele nunca poderia estar.
O resultado é que, de tanto ver dor e sofrimento, a rua vai mudando sua índole, vai se habituando ao sangue, vai gostando do seu cheiro doce e do seu gosto típico, invariavelmente acompanhado de lágrimas salgadas, algumas das quais chegam ao chão, criando o contraponto que a rua adora e que a vicia em acidentes de todos os tipos, desde que tenha sofrimento, de preferência com sangue e lágrimas.
É verdade que algumas já nascem más. Com uma visão negativa do mundo e muita perversidade em seu percurso.
Mas são minoria. A maioria das ruas sem caráter ficam assim com o passar do tempo. Por trauma ou maus tratos, que entortam sua alma, e as fazem mudar de índole, querendo a dor e a destruição no lugar das coisas bonitas que existem para alegrar a vida.
É preciso cuidado com elas. É preciso passar por elas com todos os olhos abertos e prestando muita atenção, porque, sem aviso, elas atacam e aí um pequeno descuido pode ser fatal.
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