O urubu da vitória
[Crônica de 8 de outubro de 1999]
Deixei passar bastante tempo de propósito. Existem assuntos que não podem ser tratados em cima da hora, no momento em que os fatos ocorrem, sob o risco da análise ficar distorcida, levando a uma conclusão errada.
O caso em tela, pela sua delicadeza, pelos personagens, pelo inusitado e pelas consequências jurídicas, se enquadra entre estes. Não havia como discuti-lo antes, inclusive porque a emoção e a participação de torcidas a favor ou contra poderiam deturpá-lo, retirando-lhe a seriedade e remetendo-o ao ridículo brutal e triste dos programas sensacionalistas que batem recordes de audiência explorando a miséria alheia.
A questão envolve pontos de vista conflitantes, que poderiam levar o foco da questão a se perder entre os meandros das diferentes versões, onde a única certeza é a incrível humilhação da vítima, um urubu, que sem culpa nenhuma acabou preso, em flagrante desrespeito à lei, numa delegacia de Vitória.
Mesmo que a culpa pelo acidente de trânsito que originou todo o drama fosse sua, o urubu, se não estivesse bêbado, e não há um a única prova nesta direção, não poderia ter sido preso, como foi.
A ação do agente policial representou uma grave agressão aos direitos individuais, já que, sem razão para isso, prendeu o urubu só porque este bateu contra o vidro de sua viatura. Aliás, nem isso está confirmado. Ninguém sabe quem bateu em quem, o que por si só seria motivo mais do suficiente para que a prisão não se consumasse.
Mas a arbitrariedade foi além e feriu frontalmente a legislação federal pátria, que proíbe terminantemente a prisão de qualquer animal autóctone, seja pela razão que for.
E mais, a lei determina que este tipo de delito é inafiançável, assim, a pergunta que fica não é uma, mas duas: o urubu já foi solto? E quem o prendeu, está preso?
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