A perda do passado
[Crônica de 2 de novembro de 2005]
De repente, sem doença ou amnésia de qualquer natureza o passado da pessoa vai embora, arrancado pelo vento, pela chuva, pela inundação, arrastado nos destroços da casa, da alma vendo a tragédia de longe, no corpo posto a salvo, mas só em parte.
De repente a tormenta se abate uivando como as bruxas nas noites de sabbat, transformando vidas em sombras do que foram. Em fantasmas – procurando seu túmulo, no mais escondido do palácio em ruínas, onde a precaução esconde as fotos, os documentos, da própria história.
O drama dos grandes cataclismos vai além da realidade estampada na destruição que avança em rachaduras no cão, em postes caindo, em carros sendo levados pelo vento, em ondas gigantes se abatendo sobre sólidas paredes que desmoronam, como se fossem castelos de cartas.
O drama se estende no depois, no que não sobrou nas sobras das vidas que se perderam, em histórias boiando em fotos, em cartas, em lembranças tênues como uma pétala de flor escondida numa página de livro, de onde nunca saiu nos últimos 50 anos.
Com a casa, com os entes queridos, com a morte rodando perto, vai-se também a lembrança da vida, cuidadosamente guardada em suvenires de todas as partes, de todos os momentos, os amargos e os doces.
Na fúria dos elementos em fúria, quem paga a conta é todo sobrevivente que não tem mais nada, mas acima de tudo o que perdeu sua história, e, daquele momento em diante, tem que viver lutando para não apagar da lembrança a lembrança daquilo que era sua história e a história de sua vida, guardada como o tesouro mais rico, que, de repente, sem porque, sem explicação, se acaba, feita em papel molhado, boiando numa inundação sem sentido.
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