O verdadeiro inferno
[Crônica de 20 de novembro de 1997]
Nós estávamos em casa assistindo um filme chamado “O Inferno de Dante”. Teoricamente feito para despertar emoções fortes e fazer correr adrenalina, o vídeo não empolgava, mesmo com toda uma montanha pronta para rolar encosta abaixo, numa explosão fantástica de lava, gazes, cinza e fumaça, que faria a explosão do Vesúvio parecer uma simples fonte de água quente, apesar de ter engolido Herculano e Pompéia.
Nem mesmo a lava correndo atrás do herói carregando a filha da mocinha, a fumaça tóxica perseguindo o carro com todos dentro, arrasando tudo no seu caminho, foram capazes de esquentar a noite, trazendo ainda que um pouco de suspense para justificar o preço da locação do vídeo.
Alguma coisa estava errada. Pensei que fosse minha úlcera, mas não havia motivo concreto para mais do que um pouco de gastrite. Pensei que estivesse ficando gripado, mas não tinha sintoma nenhum, quer de tosse, quer de dor de garganta, ou ao menos uma leve dor de cabeça.
Positivamente, alguma coisa estava errada, terrivelmente errada e, o que era pior, eu não conseguia detê-la. De certo na estória inteira havia o fato de um filme emocionante, ou, ao menos supostamente emocionante, estar fluindo morno.
De repente, como acontece nos momentos mais críticos da vida e dos filmes, a luz se fez: os culpados pela situação eram os pernilongos.
As dezenas de pernilongos que esvoaçavam pela sala, mordendo tudo que se mexesse, numa sanha impressionante, como se dependesse do nosso sangue a sobrevivência da espécie, ou como se houvesse um acordo secreto sabe deus com quem, interessado em infernizar a vida dos moradores do Butantan.
O zumbido na orelha, somado às picadas e a coceira faziam que o filme mal e mal fosse visto, impedindo qualquer emoção mais forte, esmagada pelo pesadelo real dos pernilongos dominando a cidade.
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