Fábula alemã tropicalizada
Faz alguns anos, eles tomaram o poder, ganharam as eleições, eleitos com os milhões de votos que os salvadores da pátria costumam ter, pelo menos depois da segunda eleição.
Se consolidaram como semideuses e começaram a demonizar os adversários. Uma mentira dita mil vezes se torna verdade, ainda mais quando as mil mentiras são replicadas outras mil.
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E começaram a perseguir os que não pactuavam com eles, no governo e fora do governo, em ataques com alguma sutileza, indicando que poderiam ser isso ou poderiam ser aquilo, sem definir o isso ou o aquilo, fazendo cara de viúva que sabe o segredo do genro e dá a entender que conta, mas fica nas reticências, na janelinha do confessionário.
Depois mexeram na segurança para colocar pessoas de confiança nos cargos chaves, com instruções para não permitir qualquer curva fora do ponto ou gol de bicicleta em jogo de basquete.
E saíram a campo, incendiando florestas, poluindo os rios… Tudo culpa dos inimigos da pátria, escondidos nos desvãos dos subterrâneos nos contrafortes da cordilheira do fundo do mar.
E todo mundo foi fazendo que não via, que não havia nada errado, que é assim mesmo, que é melhor não ver porque quem detém o poder pode me ajudar a sair da enrascada em que eu me meti quando fabriquei cloroquina falsificada para vender pros beduínos do deserto de Gobi.
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Diz a lenda que era cedo, mas era tarde. Noite escura, ninguém na rua ou cachorro latindo, apenas a sirene de um carro fantasiado de ambulância, de onde desceram monstrengos com ordens para me pegar. Será sonho? Eu grito, mas ninguém me ouve, ou faz que não me ouve. Como eu fiz quando foram atrás dos outros. Estamos com a cabeça enterrada no chão, não queremos ver, mas estão batendo na minha porta.
Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.