A vida tem pegada
Há muito tempo que eu tenho saudade da época que ser herói era fácil e reformar o mundo uma mera consequência. A vida corria mansa, razoavelmente protegida contra suas agruras e mantida num nível bom primeiro por uma mesada generosa e depois pela chance de começar cedo, amparado por boas escolas e uma grande faculdade.
Nada ia além de meia dúzia de lágrimas e das saudades de alguma coisa que ainda não era e que eu não sabia, mas doía, justamente por não ser. A dor do desconhecido, às vezes, dói mais que a realidade.
Naquele tempo, tudo era bom e amigo, tudo vinha com a facilidade dos sonhos e os sonhos se tornavam realidade, materializados em aventuras e descobertas, facilitadas pelas regras de um jogo que não pegava pesado. O mais dramático, e não era pouco, eram os acidentes de carro que cobravam seu preço, e matavam quem não merecia morrer.
Era o primeiro toque do mundo, mostrando que a vida era mais que a possibilidade de todas as possibilidades, sempre com final feliz.
Depois as coisas foram acontecendo, primeiro em volta, na morte do pai ou da mãe do melhor amigo. Na quebra do tio da namorada que pagava as despesas de toda a família. Na mudança de rumo que levou parte do dinheiro honestamente ganho, investido e perdido num mau negócio.
E vai apertando, apertando, em separações; em distâncias fundidas por desencontros nunca superados; em outras mortes cada vez mais próximas; nas doenças dramáticas; no sofrimento que não estava mais só nas telas dos filmes. Na ausência doída a cada final de dia, reencontrando os fantasmas do passado, escondidos nos escaninhos da memória, prontos para saltar para fora e nos assombrar com a crueza da vida.
Siga nosso podcast para receber minhas crônicas diariamente. Disponível nas principais plataformas: Spotify, Google Podcast e outras.
Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.