Recordações
Tem coisas que nos lembram sempre uma outra época em que a vida era melhor. É gozado como o passado, depois de um tempo, fica sempre melhor. Gozado, mas lógico, porque a memória tem o dom de esquecer o muito ruim, ou o muito doído, preservando apenas, ou pelo menos com mais força, aquilo que foi bom, que vivemos intensamente e que valeu a pena ser vivido.
Uma rua, uma praça, uma palavra, um cheiro. Inesperadamente, uma mosca voa e a lembrança volta e chega com força, trazida por algo que não tem obrigatoriamente relação direta com ela, mas que a desperta e nos desperta para aquele momento bom, invariavelmente completamente esquecido numa gaveta trancada na arca do coração.
E aí vem a luz do sol de um dia especial com o mar quebrando embaixo do morro e se estendendo azul, até se juntar com o céu mais azul ainda, na linha de um horizonte que trinta anos depois fica mais profundo que qualquer horizonte.
Ou vem a água gelada de uma cachoeira caindo nas costas e limpando a alma de todas as culpas e a mente de todos os pecados.
Vem um passeio a cavalo, debaixo de uma lua cheia que era mais cheia que as luas cheias de hoje. E um copo de vinho, deitado nos tijolos do terreiro, vendo a noite mudar de posição, no longo caminho das estrelas.
Vem tanta coisa, que de repente a gente não sabe ao menos o que vem, ou porque, ou de onde. Simplesmente vão explodindo, uma depois de outra, formando uma estrada bonita de hoje para o passado, escondido na cerca que era cortada para se chegar na caixa d’água; na uva roubada do pé e comida debaixo da ponte; nas fechaduras tiradas das portas da casa abandonada, onde, diziam, a filha do dono da fazenda havia se matado por causa de um amor impossível.
São lembranças de 40 anos para cá, numa sequência gostosa que faz eu me sentir vivo.
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