Madrugada
A madrugada é terrível. É nela que todos os fantasmas saem das gavetas da memória e tomam conta do quarto, assombrando a escuridão vagamente quebrada por uma primeira claridade que vara as frestas da janela.
De madrugada cada cavalo tem sua cor e nenhum gato é pardo. As coisas explodem com mais intensidade e se impõem com força, abafando o grito no peito, que vira uma tosse leve, com medo de chamar a atenção dos outros fantasmas que ainda não acordaram.
É a hora terrível em que os problemas aparecem como problemas. Com toda a intensidade, com toda a desesperança. Mas com a necessidade de resolve-los, porque não há o que fazer, a não ser resolvê-los.
É fundamental resolve-los. Não tem como continuar em frente sem uma solução, seja ela qual for, desde que resolva a parada.
E aí a madrugada joga a favor, porque se, no seu silêncio cortado apenas pelo barulho incessante da cidade que nunca dorme, ela embala a fotografia do problema, ao lado dela, invariavelmente, mostra também o mapa da mina, as correntes que levam ao porto seguro, onde é possível arrumar a nau, consertar as velas e o leme, para começar a nova etapa.
Mas bom mesmo é ver a madrugada avançar. A faixa de luz se tornar mais clara, iluminando mais do que o quadro da janela, entrando pelo chão do quarto e clareando as paredes.
É bom como tomar sorvete de creme com calda de chocolate. Lembrar de todos os tempos bons que passaram e não voltam mais. E sair da cama pronto para enfrentar o dia de frente, porque com o dia se faz também a luz do problema.
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