A mancha ao longe
De repente, sem nenhuma razão especial, você olha para um lado e vê, longe, quase no horizonte curto da cidade, uma mancha destoando do cinza padrão que faz mais triste o cinza do céu e o cinza triste do dia das pessoas que têm medo e passam por essa vida com medo, se escondendo da vida e da possibilidade de ser feliz.
A mancha balança de um lado para o outro como se você estivesse bêbado ou fosse um navio fantasma cortando as ruas de São Paulo, com a mesma probabilidade com que o cinema coloca couraçados enterrados no deserto do Saara.
Roxa ou amarela, ela te chama, amiga, como que querendo dividir a saudade das trilhas do ouro, dos caminhos antigos que saiam de São Paulo, para entrar na terra dos sonhos e arrancar dos Eldorados perdidos no sertão a fama e a riqueza.
Olhando melhor, você deixa a ilusão de lado e percebe um ipê, alegre, dando sua cota de felicidade para fazer mais feliz o dia cinza do qual ele quebra a monotonia, jogando no contexto as cores fabulosas de suas flores amarradas em cachos mágicos, balançando no vento calmo que atravessa a cidade, trazendo para o ipê a saudade das matas distantes de onde seus avós foram arrancados, para enfeitar a monótona rotina das pessoas que moram por aqui.
A mancha é a anárquica, quebra as regras, a expectativa. O certo seria, ali, haver só mais um pedaço de cinza. Mas a árvore se recusa a pactuar com a tristeza, por isso enche o espaço com o roxo ou amarelo de suas flores deslumbrantes. E você pensa:
“Que é a vida sem um toque de anarquia, quando esse toque serve para dar cor ao cinza que muda de cor na alegria do coração”.
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