As pedras de lastro
Pouca gente sabe, mas boa parte das pedras utilizadas nas primeiras construções brasileiras vieram de Portugal nos porões dos navios, servindo de lastro. É por isso que, vendo as fortalezas da Bertioga, uma de cada lado do canal, fico imaginando a chegada de suas pedras; a operação de descarrega-las, de transporta-las em pequenos botes e, depois, deixa-las próximo dos locais em que seriam usadas, para dar forma aos muros que protegiam a barra e onde eram assentadas as bocas de fogo, os canhões de alma lisa e carregar pela boca, que usavam balas redondas de pouco alcance e muito barulho.
Barulho que espantava os índios e que tinha mais efeito do que o próprio tiro, cuja bala mal e mal caia a 200 metros de distância.
Vendo a muralha centenária que desafia o mar na boca do canal, erguida na praia com as pedras de lastro vindas de Portugal, me vem a saudade de outro tempo que eu nunca vivi, mas que corre nas minhas veias, no sangue de meus maiores, que chegaram na terra na mesma época em que as pedras e que subiram a serra para desvendar o sertão.
E vem o respeito por cada uma destas pedras que cruzaram o Atlântico nos porões dos navios que singravam as rotas portuguesas, escrevendo nos portolanos a saga de um povo que não temeu conquistar o mar.
Vem a lembrança destes homens rudes, que em nome de Deus e para glória do rei se atreveram a arar os oceanos e cruzar os sertões.
Cada pedra vinda de Portugal e usada nos fortes e nas igrejas e nas câmaras das vilas a beira mar deveria ter gravado um nome, homenageando cada um dos homens e mulheres, a maioria deles anônimos, que tiraram o Brasil do reino das brumas, dando-lhe forma e fazendo-o uma nação.
Gente há muito tempo sem rosto, representada por nomes como Gil, Vasco, Martim, Pero, Lopo, Antonio, Fernão, Rodrigo, Maria, Inês, Izabel, cada um deles uma gota de húmus fertilizando o chão com o sangue de seu corpo.
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