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A liga duma amizade antiga

A manhã nasceu fria e chuvosa, o sítio da Candinha, em Guarulhos, perto donde hoje é o aeroporto, em 1971, apesar de ficar quase colado na capital, era a reencarnação do fim do mundo.

Molhados, com o corpo doendo, depois de dormir numa barraca para dois, atravessada pela enxurrada que deveria contorná-la, mas que obviamente passava pelo meio, o sono rapidamente dava lugar ao riso, como se as desgraças dum acampamento para treinamento dos alunos do CPOR de São Paulo fossem o paraíso na terra, e nada pudesse ser mais divertido do que a falta de conforto que nos cercava.

Os acampamentos na Candinha foram lições de vida e desde logo marcaram as diferenças conceituais entre os alunos dos diferentes cursos, ficando evidente que entre a artilharia e a infantaria existia um fosso que nem um ano de vida em comum conseguiu diminuir.

Enquanto para uns o serviço militar era um mal necessário, do qual não havia como fugir, portanto o jeito era achar graça, para outros era uma missão sagrada, que, como quase todas as missões sagradas, tirava toda a graça que porventura viesse a ter.

Eu tenho certeza de que todos os artilheiros da turma de 1.971 se lembram da marcha de protesto feita logo no primeiro acampamento. Como eu tenho certeza de que eles se lembram do enorme pileque tomado pelos oficiais num outro acampamento, só da artilharia.

Tenho certeza de que nunca irão esquecer os exercícios noturnos, ou as guardas, regadas a uísque com gelo, do acampamento de três corações, onde foi possível atirar com munição real, com os obuses de 105 milímetros.

É uma experiência impressionante, especialmente se o canhão foi mal calçado, com um morrinho enganando um buraco que não foi feito.

Mais impressionante só a operação assiso feita no último acampamento, de novo na Candinha, à meia hora da praça da sé, onde a miséria mais negra se abriu aos nossos olhos sem qualquer disfarce e com toda a sua crueza, mostrando que a vida também tem um lado feio e que ele está muito mais próximo do que a gente imagina.

Foram experiências como estas, divididas por 50 jovens de 19 anos, em 1971, que deram a base para uma amizade que dura até hoje, e que, como disse meu primo Júlio, desde aquela época nos faz uma imensa família.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.