Um prazer masoquista
Diga o que disser, nenhum psiquiatra vai conseguir explicar o prazer atávico de se dar uma topada. Isto mesmo, o prazer atávico de se dar uma topada.
Desde que o homem é homem e caminha ereto sobre a terra, a topada sempre fez parte do seu dia a dia. No começo provavelmente com mais frequência do que nos dias atuais, sendo que, naqueles tempos perdidos na névoa da pré-história, com certeza o esporte ainda não era tido como um esporte, mas como um mau começo para um dia difícil.
Quem sabe a primeira versão do prazer da topada tenha nascido da humilhação do homem das cavernas, ao chegar em casa sem unha, ou com o dedo torto, e sem caça para alimentar o clã.
Diante do riso dos rivais e do desprezo das mulheres, um deles mais esperto, saiu-se com uma história nova, que fez muito, sucesso, dizendo que ele não fora caçar, mas se divertir, e que a maior diversão do mundo era chutar pedras, uma depois da outra, trocando de dedo, para fazê-las rolarem com efeitos diferentes.
E este antepassado dos camelôs atuais e dos mascates de ontem foi tão eficiente na sua conversa que os outros homens, os que haviam rido ao vê-lo sem unha, também decidiram chutar pedras, lançando as tênues bases daquilo que milhares e milhares de anos depois se transformaria em dois dos esportes de maior sucesso nos dias de hoje: o futebol e a topada.
Deste dia em diante, os homens aprenderam que para não perder o respeito de suas caras metades é preciso fazer mágica, e que não basta ser bonito, mas é preciso ter lábia.
Com o correr dos séculos, as primeiras mensagens genéticas consolidando as topadas foram se infiltrando em genes especiais que até hoje nos obrigam, ainda que involuntariamente, a chutarmos pedras, pés de mesa, camas e outros objetos capazes de causarem o máximo de dano com mínimo de custo.
Só quem deu uma topada a pouco tempo se lembra do que é a dor que nasce da batida e se espalha pelo corpo, fina como o corte duma navalha afiada, tão funda que até o palavrão automático fica preso na garganta, porque se sair não terá o dom de consertar o estrago, nem de minorar a dor.
Resta o desalento de olhar o dedo torto ou sem unha, e o consolo de saber que nós não fomos o primeiro.
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