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O sono e o telefone

E o Senhor viu a sua obra e gostou do que viu. Então, no sétimo dia ele descansou. Até Deus, depois de criar o mundo, com todas as estrelas, e com as águas, e com os animais, e com os homens, até ele, depois de fazer a luz, no sétimo dia descansou!

Nada é mais sagrado do que o sono do domingo. O sono do sétimo dia. O sono do descanso semanal, depois duma semana do cão e duma festa até às quatro e meia da manhã no sábado.

A gente chega em casa, olha para a cama, tira a roupa e se atira, literalmente se atira nela, já meio que dormindo ainda no mergulho.

O ato de puxar o lençol até a orelha traz consigo um suspiro de rara felicidade. A felicidade dos que estão com as contas pagas, com três ou quatro drinques na cabeça e o cansaço de uma semana para embalar o sono.

Mal e mal sobra tempo para o boa noite. Aliás, a companheira está tão morta quanto nós, de forma que, ao fecharmos os olhos, ela também já está de olhos fechados, entrando na viagem fantástica ao mundo dos sonhos.

E a noite escorre como todas as noites de São Paulo. Com sirenes ao longe, travestis gritando, a polícia correndo atrás dos travestis, pernilongos experimentando novas máscaras contra gazes para vencer os protectors das paredes, cachorros latindo, o alarme do vizinho disparando, e o sono abençoado, o sono a que você tem direito, e que deve se estender até onze, onze e meia da manhã, vencendo todos os percalços, impávido e vitorioso, não deixando você acordar antes da hora prometida, da hora que faz você sentir-se de novo no paraíso, como viviam adão e Eva, antes do pecado original.

O sono é tão pesado que a vida quase fica de fora, mostrando que está viva apenas através dos sonhos que o sono pesado fará que você não se lembre na manhã seguinte.

De repente, um barulho fora de hora começa a incomodar o sono. Alguma coisa que não deveria acontecer está acontecendo. Ainda dormindo, a noção do que seja fica confusa, difusa, na pouca luz que entra no quarto.

Tem algo errado, mas não é fácil identificar o que é. Despertador? Alarme disparado? Não, no domingo o despertador não toca, nem é mais hora de alarme disparar – os alarmes só disparam de madrugada, quando causam o máximo de dano para o sono do vizinho, sem que haja ladrão nenhum na casa em que ele dispara.

Apavorado você se senta na cama. E então o barulho fica claro: é só o telefone tocando…às nove e meia da manhã do seu santo domingo.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.