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A barba que se foi

[Crônica do dia 27 de março de 1997]

O orgulho do meu amigo sempre foi a sua barba. Barba como barba deve ser: cerrada, com fios compridos, entre o castanho e o arruivado e com uns poucos fios brancos dando-lhe um ar de experiente.

Durante anos, dia após dia, nós nos acostumamos a vê-lo com ela, orgulhoso, convencido, enrolando lentamente os fios nos dedos, como um mandarim chines remoendo os seus segredos.

Sua barba era mais que o seu cartão de visita, era a sua marca registrada, foi por isso que quando ele chegou sem ela, com a cara branca, parecendo um bicho de goiaba, houve um longo minuto de espanto, seguido por uma gargalhada coletiva, de novo substituída por outro longo silêncio de espanto, outra vez seguido duma sonora gargalhada.

Quanto a ele, estava inibido, tímido, andando lentamente como se estivesse com medo e sentindo-se vulnerável sem sua barba.

Veio vindo com jeito de quem não quer chegar, sem pressa, no passo típico do urubu malandro, balançando as pernas de lá para cá e de cá para lá, com as mãos nos bolsos e um riso sem graça na boca.

Como não tinha jeito, o jeito foi chegar de vez e aguentar as brincadeiras e o riso dos amigos – por sorte, dele e nossa, o meu amigo é um homem bem humorado e com senso de humor, o que fez com que o ambiente não pesasse e lhe permitisse nos contar a estória da barba perdida.

Feliz proprietário duma maquininha japonesa, meu amigo se dedica a nobre arte de se fazer bonito sozinho. Quer dizer, com maquininha ele apara o cabelo e a barba, economizando barbeiro e deixando-os exatamente como ele gosta.
Pois numa destas vezes ele retirou um pente que fica na frente da lâmina da máquina e que impede que ela corte mais do que deve.

Sei lá por que motivo, ele esqueceu-se de recoloca-lo e meteu a máquina no bigode como sempre fizera. O resultado foi que sem o pente a máquina entrou bigode adentro, abrindo uma avenida que correspondia exatamente à metade esquerda do nobre adorno.

Sem possibilidade de conserto e com medo de ficar com cara de bobo, restou ao meu amigo passar a máquina na cara toda, raspando a barba que era o seu orgulho e que ele sempre tratara com tanto carinho.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.