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O frio fora da hora

[Crônica de 21 de junho de 1999]

Para quem mora em São Paulo, o frio não deveria ser uma agressão tão grande como para quem mora em Natal. Em primeiro lugar, aqui faz frio sim e, em segundo, nossa alma, de tanto viver no cinza duro da cidade grande, também vai se tornando fria, com pouco espaço para os sentimentos quentes, porque eles nos dão medo, eles nos expõem, eles nos desvendam para quem não queremos nos mostrar.

A vida na cidade grande corre louca e célere, sem tempo para nada, exceto não ter tempo e nos deixar exaustos, correndo sempre atrás de alguma coisa que nunca iremos alcançar.

Só isso deveria ser mais do que suficiente para nos aquecer, mas não, ao contrário, essa atividade insana, que nos faz suar, nos esfria, e nos esfria, cada vez mais, até transformar-nos em verdadeiros icebergs, imunes a qualquer sentimento bom, a qualquer beleza, a qualquer gesto.

É por isso que o frio não deveria nos assustar. O frio é parte da nossa rotina, do nosso dia a dia, dentro e fora da alma.

Mas o frio que chega fora de hora chama a atenção. Os ipês perdem suas referências e se cobrem de flores fora do tempo. Algumas quaresmeiras ficam loucas e tiram suas flores de seus armários, como as mulheres tiram os casacos de pele que as esquentam e as embelezam.

E é aí, é exatamente aí, que porca torce o rabo: vendo os ipês floridos fora de hora, vendo as quaresmeiras malucas se recobrindo com flores que não deveriam se abrir agora, vendo as mulheres agasalhadas por seus mantôs deslumbrantes, vem a pergunta: E os que estão nas ruas?

E os que moram nas ruas, sem mantôs, sem cobertores, procurando flores no fundo das garrafas de pinga vagabunda, como farão para se proteger do frio?

Quem lhes dará uma mão amiga? Quem lhes dará um pouco de calor, não num mantô de pele, mas num cobertor velho, numa blusa esgarçada, num gesto de carinho humano?

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.