Os caprichos da natureza
[Crônica de 3 de fevereiro de 1998]
São Paulo como um todo não pode ser considerada uma cidade bonita. Imponente, sem dúvida nenhuma, grandiosa também, apavorante com certeza. Mas bonita, não. É um adjetivo que não lhe cabe. Bonitas são Paris e Rio de Janeiro, Florença, Veneza, Praga.
São Paulo é grande demais, caótica demais, acelerada demais, para ser bonita. Não lhe sobra tempo e o seu tamanho superlativo faz dela uma colcha de retalhos que mistura o inusitado e o pesadelo, o sonho bom e a tragédia, com a mais absoluta falta de cerimônia, criando um mosaico surrealista que fica mais impressionante ainda quando visto do ar.
Mas São Paulo tem cenas deslumbrantes, pedacinhos que lembram o paraíso e um pôr do sol, que, com a ajuda da poluição, está entre os mais belos do mundo.
É a natureza dando sua contribuição para fazer a vida melhor, ainda que o melhor seja estético e as suas consequências práticas signifiquem a cidade ficar sem luz, debaixo d’água, com mortos e feridos e centenas de desabrigados.
Não me lembro que dia da semana passada tinha um céu maravilhoso, pintado em tons múltiplos que iam do cinza mais escuro e ameaçador ao azul mais transparente, passando por um laranja fora de lugar que parecia as portas do paraíso, chamando os eleitos para verem de perto a face de Deus.
Era evidente que a continuação da cena seria o desabar de uma enorme tempestade de verão. Tempestade que veio, mas não tão forte assim, como se São Pedro, amansado pelo cenário ficasse com pena de estragar a obra, dando na sequência a morte como complemento.
A tela do céu estava tão bonita que nem mesmo o ciúme que há dois mil anos provoca atritos entre o guardião das portas do céu e o padroeiro da cidade foi capaz de interferir na obra da natureza, sem dúvida nenhuma de bom humor, mesmo sem a nossa ajuda, e que, por conta disto, decidiu fazer mais mansa a vida de quem ficou na cidade, mesmo sendo férias de verão.
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