As paineiras
“Ah, essa impiedade da paineira para consigo mesma!” Mário de Andrade, impresso, e depois apagado, na lareira do salão da frente da casa de meu tio Alfredo.
Paineira, na visão do grande escritor, porque com seus espinhos afastava os amigos, machucando-os, quando chegavam perto de sua beleza, ou generosidade.
Poucas árvores no mundo são mais belas do que uma paineira florida, reta, com seus galhos altos, cobertos de flores entre o roxo e o vermelho, num pasto verde, no alto de um morro, numa tarde de outono.
Mas se não as temos assim, porque a cidade engoliu seus pastos, as temos enfeitando as ruas e praças, em bloco ou solitárias, todas cumprindo seu papel de embelezar a cidade.
São árvores de todos os tamanhos e idades, se bem que, sendo árvore de madeira mole, a paineira, para os padrões das árvores, não é longeva.
Eu não sei o que aconteceu com elas este ano, mas sua florada explodiu mais cedo, enchendo a cidade com a vida de suas cores fortes, tapando o cinza triste que é nossa marca registrada e que se espalha pelo chão, pelos muros e pelo céu.
Não há canto em que tenha uma paineira que não esteja manchado com a cor peculiar de suas flores pequenas vestindo seus galhos com poucas folhas.
E vendo as árvores lindas deixando mais bonita a cidade sistematicamente feia e maltratada, me vem a dúvida sobre a definição de Mário de Andrade, pelo menos agora, quando as paineiras estão e todo mundo olha para elas, procurando um pouco de cor para enfeitar suas vidas.
E a impiedade da paineira para consigo mesma se transforma em amor, um amor quente e próximo, humano, como o vermelho suave de algumas de suas flores, em retribuição para tanta beleza.
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