Dor de dente
Eu tenho uma amiga que diz que nada é mais humilhante do que dor de dente. Segundo ela, a dor de dente tira a dignidade da dor, diminui a seriedade da dor, redimensiona para menos milhares de anos de torturas e sofrimentos impostos ao ser humano pelo ser humano, sem querer e de propósito, numa infindável lista que se inicia assim que ele descobre o poder das armas, no início, pedradas e pauladas, no inimigo que ele mata, aprisiona e devora, em rituais de honra e coragem ou de vergonha.
Concordo com ela. A dor de dente existe para degradar a sensação da dor, a importância do sofrimento físico, o orgulho do torturado. Não há orgulho possível numa dor de dente. Ela é mixa, menor, quase vergonhosa. Aliás, só não é uma completa vergonha porque dói, dói muito, indiretamente tortura a alma e diretamente macera o corpo e isso salva um mínimo de respeito por ela, que cai inadvertidamente feito raio na cabeça da vítima.
Literalmente, a dor de dente cai feito um raio na cabeça da vítima. Seja a dor local, a dor no dente afetado, seja na dor que se espalha por cada nervo e toma a cabeça, fazendo os olhos tremerem como luz estroboscópica, numa sucessão de picadas de ferro em brasa, até o desespero, que cresce em ondas que se difundem pelo corpo e tiram o sossego da alma.
Dor de dente é dor de dente, não tem comparação com outra dor. Ela dói profundamente, constantemente, vergonhosamente, enlouquecedoramente, até atingir o âmago do ser e confirmar a derrota do corpo e da alma de sua vítima indefesa.
É nessa hora que odontologistas ganham uma dimensão heroica. Só eles e elas, com suas artes mágicas, são capazes de acabar com a dor de dente, ainda que para isso causem outras dores atrozes, que só se justificam pelo fim a ser alcançado: o fim da dor de dente.
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