Os sabiás e a primavera
Fora ainda está escuro. Uma levíssima claridade, formada mais pela iluminação da rua do que pela aurora que ainda não nasceu, delimita o quadro da janela do quarto, onde, eu, madrugando sem querer, penso na vida, na solidão da madrugada.
De repente, ele começa. Ainda está escuro, mas ele começa. Como que movido por uma certeza atávica, apurada ao longo de milhões de anos, ele começa.
É um canto de filhotão, longe da perícia de uma ave mais velha, acostumada a soltar sua voz durante o dia, para alegrar quem está perto.
Invariavelmente é inclusive pouco melodioso, mais para um pio comprido do que um canto pra valer, mas tem uma poesia única, um que de eterno, de divino, na busca pela fêmea que ele chama, prometendo dividir o mundo com ela.
Tem pouca coisa mais gostosa do que escuta-lo, do lado de fora, piando, enquanto a claridade, como que trazida pelo seu canto, vai dando forma à janela e clareando um pouco o quarto.
É um bálsamo para o sono que não vem de novo, nem virá, pela falta de tempo entre a sua chegada e a hora de eu me levantar.
Hino à vida, é sempre na primavera que os sabiás se lançam ao desafio de cantar de madrugada, não como boêmios que ainda não foram dormir, mas como arautos do dia, que ainda no escuro, eles já sabem que vai nascer.
Eu gostaria de entender o que eles dizem, que mensagem transmitem? como cativam suas parceiras? se é que as cativam, o que eu duvido, porque, tenho certeza, ainda não nasceu o macho que cative uma fêmea, seja lá da espécie que for.
Pode ser que seu canto seja somente isso. Um chamado para a perpetuação da espécie. Mas, será que não há nele algo de profundamente antigo, feito da mesma força visceral que move o mundo e os homens e as mulheres?
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