A chuva, o orelhão e o vendedor de caju
[Crônica do dia 26 de março de 1997]
Teoricamente não há qualquer relação entre uma chuva, um orelhão e um vendedor de caju. Pelo menos não deveria haver, muito embora na longa linha das ligações improváveis, e com base na teoria dos grandes números, nada seja impossível, nem mesmo uma conexão como esta.
A estória aconteceu num dia de tempestade, destas que param São Paulo, impedindo a volta para casa e obrigando milhares de pessoas a se ajeitarem onde der, do jeito que der, pelo tempo que der.
A tempestade chegou rapidamente, depois de um aviso breve, que escureceu o dia e despejou toneladas de água na cabeça de todo o mundo.
No momento em que o crepúsculo dos deuses começou, ela estava no fórum de Santana fazendo uma audiência, o que impediu-lhe de dimensionar corretamente a abrangência do desastre.
Quando saiu para a rua viu que a situação era trágica e que não havia nada a fazer, exceto esperar.
A primeira hora se passou, e a segunda, com a chuva caindo sempre, cada vez mais forte, transformando a rua num rio como pororoca.
Como não tinha jeito, o jeito foi tocar em frente e ela saiu correndo para a estação do metrô, que nos dias normais não fica longe, mas que naquele dia parecia do outro lado da cidade, não chegando nunca enquanto ela corria e ficava mais molhada, com os sapatos se desfazendo como os marronzinhos quando tomam chuva.
Na estação ela descobriu que o metrô não funcionava. Conformada com a desgraça, saiu em busca de um orelhão, para avisar em casa que a volta poderia levar mais de um dia.
Foi aí que o destino juntou numa única cabine de telefone, ela e um vendedor de caju, que se escondera ali para fugir da chuva.
Com os dois e um saco de cajus apertando-os ainda mais dentro da cabine, não dava para ela usar o telefone, principalmente por causa do saco com as frutas, que o homem insistia em manter seco.
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