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A chuva, o orelhão e o vendedor de caju

[Crônica do dia 26 de março de 1997]

Teoricamente não há qualquer relação entre uma chuva, um orelhão e um vendedor de caju. Pelo menos não deveria haver, muito embora na longa linha das ligações improváveis, e com base na teoria dos grandes números, nada seja impossível, nem mesmo uma conexão como esta.

A estória aconteceu num dia de tempestade, destas que param São Paulo, impedindo a volta para casa e obrigando milhares de pessoas a se ajeitarem onde der, do jeito que der, pelo tempo que der.

A tempestade chegou rapidamente, depois de um aviso breve, que escureceu o dia e despejou toneladas de água na cabeça de todo o mundo.

No momento em que o crepúsculo dos deuses começou, ela estava no fórum de Santana fazendo uma audiência, o que impediu-lhe de dimensionar corretamente a abrangência do desastre.

Quando saiu para a rua viu que a situação era trágica e que não havia nada a fazer, exceto esperar.

A primeira hora se passou, e a segunda, com a chuva caindo sempre, cada vez mais forte, transformando a rua num rio como pororoca.

Como não tinha jeito, o jeito foi tocar em frente e ela saiu correndo para a estação do metrô, que nos dias normais não fica longe, mas que naquele dia parecia do outro lado da cidade, não chegando nunca enquanto ela corria e ficava mais molhada, com os sapatos se desfazendo como os marronzinhos quando tomam chuva.

Na estação ela descobriu que o metrô não funcionava. Conformada com a desgraça, saiu em busca de um orelhão, para avisar em casa que a volta poderia levar mais de um dia.

Foi aí que o destino juntou numa única cabine de telefone, ela e um vendedor de caju, que se escondera ali para fugir da chuva.

Com os dois e um saco de cajus apertando-os ainda mais dentro da cabine, não dava para ela usar o telefone, principalmente por causa do saco com as frutas, que o homem insistia em manter seco.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.