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Tragédia urbana

Tua indiferença tem algo de trágico. Ela já não se comove com a vida que te rodeia, nem sente pena, ou vergonha. Tua indiferença apenas te faz viver como um zumbi, uma máquina sem coração, que anda pelas ruas da cidade, distante de tudo e de todos.

Pouco, muito pouco ainda te toca. No mais, você já não se comove. A flor nascida numa racha de muro, a árvore com seus frutos fora de lugar, o canto de um sabiá, nada sequer chama tua atenção. Você simplesmente passa, sem ver, sem escutar.

No trânsito, o mendigo bêbado, parado entre as faixas, é apenas mais uma amolação. Os olhos da criança com certeza alugada que te imploram não a esmola, mas a chance de não ser espancada, servem somente para que você feche o vidro, e reze para que o sinal abra rápido.

A chuva que cai e além de molhar a terra, mata, nas enchentes da cidade mal tratada, é apenas mais um assunto para a conversa do bar. Papo de happy hour inconsequente, sem continuação ou compromisso.

As lojas fechadas, os muros pichados, a frases estúpidas que na maioria das vezes cobrem os muros, nada te sensibiliza, e você segue em frente, distante de todas as mazelas que são parte constante do dia a dia de tua cidade.

Mas você já foi um passo além: a própria vida não te comove mais. Tua indiferença é tão definitiva que um gesto de carinho ou uma palavra de apoio passam, na maioria das vezes, completamente desapercebidos.

Teus olhos aprenderam a não ver. Você não quer ver as pessoas, nem seus sentimentos, nem o que elas podem te dar. A vida é você! Nem Luiz 14 teve tanto de egocêntrico como a tua maneira de olhar o mundo. Fora você o resto é simplesmente resto. Quando muito, resto que serve para você tirar vantagem, resto que serve para você ficar mais rico, dar mais um golpe.

Teus olhos não olham nos outros olhos. Tua cabeça está permanentemente de lado, fugindo de quem te olha, de quem procura o que vai por traz de teu sorriso, que é mais um ricto, um esgar, do que um riso solto. Teus olhos não acompanham tua boca. Teus olhos não sorriem nunca. Eles são tristes. Ou melhor, eles são apagados.

A vida que não te comove, não te comove porque, lentamente, sem que você percebesse, ela começou a te deixar. Aos poucos, tua indiferença fez de você um pobre coitado.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.