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As voltas da vida

Por mais que a arte tente, ela nunca vai conseguir se igualar à vida. A imaginação humana não consegue alcançar os picos de miséria e de maravilha, de horror e de beleza que a realidade, sem ninguém esperar, joga na nossa frente.

Quem somos nós diante do universo? Um cisco perdido no espaço, que pode ser apenas o casaco dum gigante, ou uma célula cancerosa, corroendo o corpo do mesmo gigante. Um dia alguém passa a escova e nós caímos, ou somos destruídos por uma aplicação de quimioterapia, que nos apaga, sem deixar ao menos uma lembrança.

Os faraós construíram suas pirâmides para se perpetuarem no mundo. Mas o que sobrou de Quéfren? O que nos deixou Queóps? Qual a última vontade Miquerinos? Não sobrou nada, exceto um monumento que traz o seu nome, e que é mais terrível porque, dentro da sua enorme beleza, este nome não nos diz nada. A associação entre o nome do rei que queria a eternidade e a ponte das bandeiras é exatamente a mesma: um nome, que a maioria das pessoas não sabe quem foi.

Mas se o esquecimento é a nossa última herança, a vida pode judiar dos homens, fazendo-os serem esquecidos ainda aqui, perdidos sob uma ponte, num terreno baldio, num monturo de lixo.

O retrato da mulher do grande cantor, morando debaixo de um viaduto, na periferia do rio de janeiro, é o retrato de como a vida pode ser madrasta, e de como a estabilidade humana tem a certeza do tremor de uma folha.

As misérias de Jó acontecem com mais frequência do que nós gostamos de pensar. Quantas pessoas nasceram em berço de ouro, para decaírem até os fundos mais baixos da condição humana, conhecendo o inferno na terra, e comendo o pão que o diabo amassou, sem terem feito nada para merecerem tão terrível castigo?

Os mitos gregos são um pálido retrato da realidade. As desgraças de édipo, a tragédia de Agamenon, Clitmnestra morta pelos filhos, perto de uma única página policial de jornal popular, são menos do que nada, não dariam três linhas, debaixo de um anuncio pequeno, só para tapar buraco.

E é aí que é preciso parar: a imagem imobilizada de uma velha suja, desdentada, feia, não nos deveria sensibilizar. Todos os dias nós as vemos, bêbadas, andando pelas ruas da cidade.

Mas quando esta imagem é o que deveria ser o retrato distorcido de alguém que teve tudo, o impacto é terrível. O impacto nos atinge bem no meio do estômago.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.