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Lamento de um ex-opala

– Oi, você que está me vendo e imaginando o que eu faço rodando no meio da rua, carcomido pela ferrugem, sem cor definida, sem segurança nenhuma para os meus passageiros e para os outros.

– Pois é, no passado, eu também fui um carro, o mais moderno que tinha, com linhas atuais e de causar inveja nos carros velhos que então andavam pelas ruas. Eu já fui reluzente, tratado a água e sabão duas vezes por semana, encerado depois de cada férias, com o motor sempre limpo e sempre de óleo novo, azeitando o ronco suave que eu fazia e que deixava os meus passageiros escutarem a música que saia dos primeiros gravadores instalados em automóveis. Nesta época eu tive três, um, o primeiro era de carretel. O segundo e o terceiro já foram cassetes, um Mecca e outro Sony. Na época eram os melhores…

É verdade que eu nunca tive freio a disco. Naquele tempo acho que só o corcel é que tinha, mas eu tinha um sistema de regulagem automática do freio, que funcionava quando se engatava marcha ré.

E muito mais do que isto, eu fui e voltei, no verão de 72, de São Paulo ao rio grande do norte, numa viagem completamente louca, em zigue-zague pelo interior e pelo litoral do brasil. Não furou um único pneu, nem eu tive qualquer problema mecânico. Queria ver um destes carros de hoje, com ABS e air bag aguentar as estradas por que eu passei. Não chegavam no norte de minas, quem dirá na divisa de Sergipe com alagoas, para atravessar o São Francisco de balsa, na companhia dos jegues e de uns poucos caminhões.

Você que me vê agora não pode imaginar estas coisas. Naquele tempo o Brasil era outro país. Eu fui fabricado para ser o melhor carro daquele país. Quer dizer, eu achava que eu era o melhor, mas os fuscas, os galaxies, os dodges e os corcéis também se achavam os melhores. De verdade, eu não sei quem era o melhor, acho que todos nós éramos bons.

Se eu agora sou uma ruína que não lhe impressiona, a culpa não é minha. Eu deveria ter sido destruído há muito tempo. Deveria ter sido reciclado, cumprido o meu ciclo e integrado o ciclo de um outro automóvel, feito depois de mim, aproveitando um pouco das sobras dos meus ferros e das minhas latas, que se eternizariam na carroceria nova, que, por sua vez, também cumpriria o seu ciclo e também seria destruída e reciclada, para servir de base para outro carro novo, eternamente…

Eu fui um opala. Um opala 2.500 especial, ano 71, cor verde amazonas. Cheguei a ter uma margarida e um gato nas portas… Agora eu tusso fumaça. A culpa não é minha, mas eu ainda ando…

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.