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De madrugada

Ninguém é herói às cinco horas da manhã. De repente, sem um porquê definido, nós acordamos. Fora ainda está escuro, o calor já não é tão forte, mas nós não conseguimos dormir de novo e ficamos fritando na cama, virando de um lado para o outro como um bife bem passado.

Aos poucos a cabeça começa a funcionar. Numa auto análise indesejada, mas fora de controle, começamos a pensar o que fizemos e por que fizemos uma série de coisas que se não tivéssemos feito, nos sentiríamos melhores.

Tentamos apagar o tema, pensar outro assunto, lembrar quando acordamos às seis da manhã e fora um sabia cantava, espantando os pensamentos duros que insistem em chegar.

Cinco horas da manhã! A tortura começa por sabermos que ainda faltam no mínimo duas horas para nos levantarmos e que durante todo este tempo nós não conseguiremos fugir, fincando acuados num canto da cama, cercado por nossas ideias, por nossas lembranças, por nossas vergonhas. É raro, a esta hora, pensarmos coisas boas, aquelas que nos engrandecem, inclusive porque, de verdade, nós sabemos que as coisas que nos engrandecem não são tão grandes assim, e que, sozinhos, rolando no colchão que parece o estrado de um faquir, sem ninguém para ver nossos olhos, não precisamos fingir um tamanho que não temos.

A vida só é passada a limpo no escuro da madrugada, quando é difícil vermos uma réstia de luz, ou uma mancha mais clara, por menor que seja, estampada na parede. Então sem nos vermos, mas nos sentindo, com vontade de alguma coisa que não sabemos definir, absolutamente sós – eu e eu – sem outra companhia senão a alma e o que ela sabe e que está escondido no mais fundo da gente, nós nos encontramos frente a frente com nossa consciência, sabendo de antemão que já perdemos a parada.

Ainda tentamos fingir, mas os minutos se arrastando, quase parados, nos levam a um grau de exaustão que termina por nos fazer jogar a toalha e reconhecermos tudo aquilo que nós sabíamos, mas que teimávamos em deixar escondido, com medo de termos que olhar de frente.

Mas se a madrugada é dura na forma com que nos joga de encontro a nós mesmos, ela também nos ajuda a encontrar a solução. Durante as duas horas entre o momento em que acordamos e o dia clarear, a vida se quebra e se refaz mil vezes, nos desmontando, desculpa a desculpa, para nos reconstruir mais fortes, em paz com o corpo e com a alma, sabendo que nós vamos errar de novo, mas sem medo de tentar.

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Crônicas da Cidade vai ao ar de segunda a sexta na Rádio Eldorado às 5h55, 9h30 e 20h.

Antonio Penteado Mendonça

Advogado, formado pela Faculdade de Direito Largo São Francisco, com pós-graduação na Alemanha e na Fundação Getulio Vargas (FGV). Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2017/2020), atual Irmão Mesário da Irmandade, ex-presidente e atual 1º secretário da Academia Paulista de Letras, professor da FIA-FEA e do GV-PEC, palestrante, assessor e consultor em seguros.